Se você não está isolado da internet, deve ter visto que na mesma semana tivemos dois fatos sobre o famoso home office. O primeiro foi o CEO do iFood, Diego Barreto, sendo claro na adoção e sucesso do modelo no iFood e o segundo, o Itaú fazendo um layoff baseado no problema do mesmo modelo.
Se você ainda não me conhece, prazer: me chamo Guilherme Rey, sou sócio-fundador da Kickops, uma consultoria estratégica em produtos digitais, além de professor universitário de Ciência da Computação e um grande entusiasta do trabalho remoto - modelo de trabalho que a Kickops adotou desde seu nascimento e tem se provado cada vez melhor. Não é de hoje que eu falo sobre os benefícios do trabalho remoto. Eu só não me auto declaro um evangelizador do assunto porque ainda não criei uma instituição formal para isso (mas nunca é tarde, não é mesmo?) 😅.
Meu objetivo é mostrar, a partir desses dois acontecimentos, que o debate sobre home office e trabalho remoto não é sobre produtividade em si, mas sobre cultura e liderança.
O caso do iFood
O atual CEO do iFood, Diego Barreto, passou um tempo com os integrantes do PrimoCast, para que eles pudessem acompanhar sua rotina. Uma conversa entre eles acabou se destacando na internet, através de um corte. Nele, a frase que mais se destacou para mim, foi “A gente acredita em cultura”.
Eu trabalhei no iFood, quando o Diego Barreto ainda era o CFO. Fui coordenador de uma equipe da área B2B, um marketplace que conectava restaurantes a fornecedores de insumos e embalagens, chamado de iFood Shop. Foi um dos anos mais felizes e intensos da minha carreira profissional. Pude trabalhar com pessoas incríveis, tive oportunidades excelentes de aprendizado e - na época - um escritório fora de série (até valia a viagem diária para Osasco). O escritório contava com tudo aquilo que se espera de espaços físicos de startups: mesa de sinuca, tênis de mesa, bebidas, tarde do sorvete, pipoca e até um café com baristas só para nós (tomei muitos macchiatos lá).
Nessa época o CEO era o Fabricio Bloisi, fundador da Movile. Ele tinha o costume de falar sobre duas coisas principais: como foi o trabalho de trazer uma visão diferenciada de cultura para dentro do iFood; como estava criando uma organização ambidestra. De fato o iFood vivia a cultura da empresa. Eu pude presenciar uma mudança de valores para um acrônimo fácil que me lembro até hoje (trabalhei lá em 2018!), o I’M A LOVER. Essas eram as iniciais para Inovação, Meritocracia, All Together, Lean, Operational Excellence, Versatility, Empreendedorismo e Resultados, todas relacionadas com o fato dos colaboradores serem chamados de FoodLovers.
Claro que meu lado anti-coach quando ouve isso sem algum contexto tem vontade de criar um conteúdo dizendo o quanto isso é o suco da Faria Lima, usando palavras soltas, misturando inglês e português, tentando justificar barbaridades para os funcionários. Mas a verdade é que existiam muitas ações envolvendo o cotidiano da empresa para que os valores fossem realmente vividos e recompensados. Esse foi um aprendizado muito importante pra mim. Eu vinha de uma experiência prévia muito ruim relacionando a empresa à sua cultura, onde o CEO basicamente ficava repetindo palavras soltas e usando-as como justificativa para fazer o que quisesse com as pessoas.
Para eles, a cultura é um maior ativo do negócio. Sem cultura, sem empresa. Enquanto o iFood construiu sua visão de cultura como ativo central, outros player tradicionais, como os bancos, enxergam isso de maneira um pouco diferente. É aqui que entra o caso do Itaú.
O caso do Itaú
Eu não posso relacionar o caso desta instituição com alguma experiência pessoal, nunca trabalhei lá. Mas já trabalhei dentro da estrutura de um banco, quando fui CTO da Spiti, que era sócia da XP. Lá dentro tive a oportunidade de observar bem a cultura que costumamos ouvir de bancos: chegar antes e sair depois, muito tempo extra fora do horário de trabalho, muita conversa no cafezinho, etc.
O Itaú - como muitas empresas - mantém um programa instalado nos computadores de seus colaboradores, com o objetivo de obter dados importantes sobre utilização do mesmo. Identificação dos cliques de mouse, logs de programas abertos e usados, etc para gerar um relatório de uso. O funcionário acumula algo análogo a strikes, que vão determinando os feedbacks e, no limite, desligamento.
Em nota para a imprensa, o banco se defendeu dizendo que “[...] em alguns casos, a atividade registrada não ultrapassava 20% da jornada contratual, mesmo com a inclusão de horas extras. Para o Itaú, esse comportamento compromete a relação de confiança necessária com a equipe e representa uma falha grave de conduta.” - Tribuna de Minas, 2025. Então, pelo que parece, um indicador problemático para o banco é a quantidade de horas registradas pelo programa - pelo menos para os trabalhadores remotos. O fato da nota tratar sobre a “relação de confiança” é importante, porque mostra que a empresa também tem valores culturais a serem considerados, como no caso do iFood. Para o Itaú, o valor da confiança pode ser analisado de maneira quantitativa através dos indicadores de atividade.
Quem está certo?
De um lado, temos o iFood, empresa criada em 2011 com faturamento de aproximadamente R$ 7 bilhões, dizendo que nenhum número demonstra uma queda de produtividade. Do outro, uma empresa fundada em 1945 com lucro de R$ 41,4 bilhões em 2024, dizendo que depois de medir a atividade dos funcionários, percebeu que muitos estavam bem aquém do esperado.
Os registros do Itaú não são uma demonstração de que o CEO do iFood está errado? A resposta é: não.
O principal problema começa com o significado de home office. Para muitos, o home office é basicamente uma transposição do trabalho no escritório para uma casa ou qualquer acomodação do colaborador. Por isso, na realidade deveríamos estar sempre tratando sobre trabalho remoto. Assim, o foco deixa de estar no trabalhador e passa para a atividade. Para a análise que estamos fazendo neste contexto, essa mudança é bastante significativa.
O questionamento dos membros do PrimoCast mostram o cerne de toda a polêmica que envolve o trabalho remoto. Eles perguntam para o Diego Barreto como funciona a parte “invisível” da carreira dos colaboradores. Durante meu tempo dentro do Grupo Primo, pude vivenciar essa cultura que origina os questionamentos deles, com muito valor para a conversa de corredor, para a frase “você tem que ser visto para ser lembrado”, a “política” do mundo corporativo e etc. Depois da pergunta, o CEO do iFood responde sem titubear que, até agora, nenhum número demonstra que o trabalho remoto diminua a produtividade.
Assim, tanto o iFood quando o Itaú podem estar certos, cada um em seu contexto. Mas essa é uma ótima oportunidade de entender o problema central.
Impedance Mismatch
A mudança de terminologia não foi a toa. O home office é como tentar forçar o modelo presencial dentro da casa do colaborador: muda o endereço, mas mantém a lógica e as métricas antigas. Já o trabalho remoto é outro modelo de trabalho, que exige novas formas de medir, gerir e liderar.
Em Engenharia Elétrica existe um conceito chamado impedance mismatch: quando dois sistemas têm características diferentes e não conseguem transferir energia de forma eficiente. A Computação pegou emprestada essa metáfora para descrever a dificuldade de traduzir informações entre modelos distintos, como o orientado a objetos e o relacional.
Eu gosto de estender essa ideia para o debate sobre home office e trabalho remoto. Quando uma empresa insiste em avaliar o remoto com os mesmos critérios do presencial, cria-se um verdadeiro “mismatch cultural”: as métricas não encaixam, os resultados parecem distorcidos e a confiança é colocada em xeque.
Por isso o principal componente acaba nunca aparecendo em todos os debates sobre trabalho remoto. O foco fica no trabalhador, quando na realidade deveria estar na liderança das empresas. O trabalho remoto não pode ser medido da mesma maneira que o tradicional, porque é um outro modelo de trabalho.
No caso do iFood, o CEO não vê motivos para mudar, porque a empresa já adota uma cultura remote-first. Os funcionários podem ir todos os dias ao escritório (que continua incrível) e ainda assim tudo funciona, porque o modelo não depende da localização. Já no Itaú, o uso de métricas de atividade acaba caindo no mismatch cultural: a liderança tenta medir trabalho remoto com régua de trabalho presencial.
Para poder aderir ao trabalho remoto, a empresa precisa criar uma cultura remote-first — e, na minha visão, isso deveria ser a base de qualquer organização que queira evoluir.
Nós sabemos que as pessoas preferem modelos híbridos e tem mais motivação quando podem trabalhar remotamente. Mas mesmo que todos estivessem no escritório todos os dias, ainda assim as empresas deveriam criar uma cultura remote-first. No fim, o modelo não é sobre localização, mas sobre maturidade da organização: foco em resultados, autonomia, menos microgerenciamento e mais confiança. Esse é o tipo de cultura que beneficia qualquer organização.
Em breve a Kickops terá uma parte dedicada a ajudar empresas a criar este tipo de cultura. Não fique de fora das novidades e entre na nossa lista, clicando no link: